Interessante, não? Pq a imaginação duma criança pode ser uma maravilha da natureza, mas o cérebro dela é terra fértil, q minhoca adora. Além disso, a minhoca – já viu, né – é um conhecido transmissor de hipoplausivírus. Responder plausivelmente às crianças curiosas é questão de saúde pública, e nosso ecúmeno doutor tem infinito respeito pelos pirralhos. Com crianças, ele é um poço de ternura: tem incontadas medalhas estaduais e nacionais, e foi o grande vencedor do 19° Festival Internacional de Ternura, realizado em 1991 em Antananarivo. Então, ¿quem mais além dele seria adequado pra nos ensinar como preparar uma criancinha pra viver sem esperranços post-mortem no século XXI – o século da cisão entre o saber e o crer?
Eu sempre vi a individualidade, o EU, não como uma coisa real mas como uma miragem fortuita e passageira dum feixe de eventos, como o quadrado q só se vê qdo se olha pra quatro varetas dum certo ângulo:


, apertando de olhos fechados o vértice do V, e diga o q sente. A resposta é sempre algo como "parece q tem uma bolinha no meio, uma bola de gude ou de metal". Faça vc mesmo o teste; vc vai ter a nítida impressão de q tem um bola dura no meio do maço de envelopes. O doutor então desfaz o maço pra mostrar q não tinha bolinha nenhuma ali: a impressão é causada pelo amontoamento de papel verticalmente ao V. Aí o doutor explica q o gatinho, o avô, o coelhinho decapitado começando a feder embaixo da caminha da menininha, eram todos como aquela bolinha no meio do maço, só q MUITO mais complicados: a bolinha tava ali e não tava ali ao mesmo tempo; aí o maço se desfez e não dá pra montar de novo, nunca mais.
A pirralhada nunca entende a analogia na primeira; mas sua atenção é curta: logo vão tar falando doutra coisa. Caso uma criança insista, o doutor explica os dois teoremas da incompletude de Gödel e suas conseqüências teleológicas. A explicação dura uns 15 anos, e fica tudo por isso mesmo qdo a pirralha atinge a maioridade penal.
Só mesmo um cérebro imerso numa sopa de hipoplausivírus não vê a profunda e absurda maldade expedientista em fazer uma criança acreditar q seu EU sobreviverá a sua morte pra ser punida ou recompensada eternamente dependendo de seus atos infantis, suas inépcias sociais e seus impulsos naturais.
-----
Adendo
Pra consumo infantil, a analogia do Hofstadter pode ser contextualizada um pouquinho. Se a pirralha aperta o maço de envelopes, sente a bolinha, e aí vc esparrama os envelopes e diz q na verdade nunca houve bolinha alguma, e é isso q vai acontecer qdo ela morrer, então 10 contra 1 q ela abre o berreiro. Mas tem uma saída elegante: antes de lhe dar o maço, vc escreve em cada envelope o nome da criança; aí, depois de separá-los (qdo ela "morre"), vc risca o nome dela e vcs dois juntos endereçam cada envelope a uma coisa diferente ou a uma pessoa diferente (tanto quem ela conheça como quem não conheça): "Máicon", "Gyslaine", "Pato", "Árvore", "Pedra", &c. Qdo ela morrer, uma parte do q a formou volta à natureza, outra parte continua em outras pessoas. E vira uma brincadeira de escrever e desenhar em papel. ¡Que doces momentos....!
Claro, uma criança de 3 anos minimamente inteligente vai questionar a predestinação implícita na analogia, o uso duma bolinha real como significante duma imaginária e o nihilismo de ter envelopes vazios pra q a analogia dê certo. Nesse caso, vc tem duas opções: ou lhe dá arsênico pra ela deixar de encher o saco, ou lhe dá vitaminas pra ela ficar bem forte e, qdo crescer, encher o saco do mundo todo.